sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Algumas palavras batem à porta. Pedem licença. Entram sorrateiras, e, como quem não quer nada, se instalam na poltrona da sala, assaltam a geladeira, passam a exigir melhor tratamento. Alocam-se em espaço privilegiado dentre os lábios; querem re-existir a cada período e oração. Inicialmente feitas de amor, passam a ser casca desprovida conteúdo - signos imperfeitos.
Ela sempre fora menos humana do que animal - não se adaptou nunca aos padrões e etiquetas sociais. Lavava os caminhos com suas mágoas, deixando um rastro de lesma por onde pisava. Seu coração, qual pássaro recém-colhido do ninho, pulsava amedrontado, sem ideia de voo.


Um dia, porém, a surpresa - sem mais riso de hiena e olhar amedrontado de ratazana, metamorfoseou-se em gente. E, às noites, passou a sonhar, com nostalgia, kafkianamente.

Para as palavras, ela se entregava inteiramente, despudorada. E sempre às escondidas. Que não convinha a mulher casada ter tantos desejos, malícias, sonhos reprimidos entre as panelas do jantar. Quando seu homem chegava a casa, sentia o cheiro do gozo verbal a impregnar as paredes – com um olhar de censura, negava a comida que a mulher lhe ofertava, pois o seu orgulho de macho ferido não aceitaria prato elaborado entre poesias gemidas. Ela, no entanto, não aprendia; seu adultério não conhecia limite além das páginas dos livros. Barrocos, românticos e os repulsivos naturalistas dividiam sua posse, rolavam pela sua cama.  Um dia, porém, quis ir além – expôs-se como puta nas livrarias, ofertando sua alma ao primeiro que a quisesse comprar. Todinha, integralmente, se ofereceria a homens, mulheres, crianças, sacerdotes. Seus pensamentos mais profundos seriam de conhecimento geral, acessíveis a qualquer má-intenção. Contudo, não durou muito. Perturbado, o marido disparou um tiro certeiro. Ela morreu pela boca.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Difícil sobreviver às tristezas miúdas que compõem o dia a dia. Para as grandes dores, sempre há as comoções nacionais, o cortejo pomposo, a multidão solidária nos abraçando com sua força de onda. E quem me salva dessa marolinha constante e tão aguda de aflições pequenas, quase invisíveis? Chorar vira prova de fraqueza; reclamar, atitude de pessimistas. A solução é se arrastar pela orla, com um falso sorriso na cara e o coração quebrado dentro do peito.


Algumas palavras escorrem pelas esquinas, se infiltram nos vãos e desvãos de janelas, portas, almas rotas, ouvidos surdos, corações amarrotados. Só palavras - sem existência concreta, sem dedos para tocar, sem lábios a deslizar pela pele. Não levam traições, não concretizam o amor que poderia ter sido. E vestem outra pele para concretizar o amor de todo dia, “bom-dia-boa-tarde-onde-estão-as-crianças-como-foi-o-trabalho-eu-também-te-amo”. Enquanto isso, as outras - palavras de fúria ardente - roçam os ouvidos que nunca alcançam.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012


As notícias saem por meu corpo, vazam pelas extremidades dos dedos, escorrem pelos orifícios. Cada poro tem uma história para contar e quer se fazer ouvir. São tantas as narrativas, são inúmeras as versões de uma vida única - e ainda assim, tão poucos espectadores. Preciso de público para minhas respirações, poses, contrações estomacais e desmaios românticos. Quero ser assistida em cada pulsar, cada ranger de dentes, cada pequena morte. Somos milhares de células, bactérias, sinapses e vazios - e tudo o que pedimos é 1 companhia.  
Ela se entregava inteirinha a cada vez. Sempre miudamente e com muita discrição - qualidades tão raras à espécie mulher. Afinal, onde encontrar fêmea que não seja panfletária, explosiva e independente nos dias que correm? Entretanto, ela se orgulhava de ser a Amélia restante, diamante não lapidado por teorias feministas e derivados. Esperava seu amado sem nunca olhar o relógio - e quando ele vinha, cheirando a sexo alheio e rápido (feito por outras que, ao contrário dela, não primavam pela paciência) era grande o amor. Pequena a demonstração, entretanto. Homem não gosta de afeto despejado pelas calçadas, do coração que rastreia os passos errantes de macho. Não. Ela sabia. Homem se agrada é com muita paciência, muita dependência, muita carência. Ela se entregava inteirinha a cada vez - sem nunca conseguir arrancar este maldito diminutivo de sua alma e de sua cara, tão metade.